quarta-feira, maio 07, 2003

Hoje é um dia especial: estou inaugurando a primeira participação "estrangeira" neste blog. Ou seja, estou colocando uma história que NÃO aconteceu comigo, mas sim com outras pessoa!

Gustavo Dumas é escritor e traficante de poesias. É, como eu, um desviado de função, isto é, trabalho com informática mas tem uma formação completamente diversa. Edita periodicamente a revista virtual BalbuCios (que eu recomendo e - confesso - devo uma contribuição). Sua escrita tem uma fluidez impressionante que, inclusive, não compromete em nada o senso crítico e muito menos deixa seu texto raso. Com vocês, Gustavo Dumas:

A doce alegria de uma tristeza
Por Gustavo Dumas

Há sim, impossível que não haja alguma explicação para o fato de eu cismar e teimar em escrever nas horas mais inapropriadas. Tipo: de pé no ônibus lotado; falando ao telefone com algum ser pegajoso, daqueles que dispensam interlocutores para tagarelar obviedades; andando na rua (o que me faz às vezes falar, dizem, sozinho, do que discordo; estou é representando um diálogo interno riquíssimo, em que atuam personalidades as mais diversas: as pessoas que me habitam e que me fazem vez por outra destrambelhar um tantinho...). Espero que isso não seja um sintoma de demência irreversível. Este texto, esta croniqueta: começo a escrevê-la pelado. Sim, estou nu. Ia entrar no banho quando... Vou voltar um pouco. Estava ouvindo a Clara Nunes entoar “Minha Festa”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Belíssima música, grande cantora, ótimo arranjo. Tudo muito triste, devem achar os jovens globalizadinhos de hoje. (Podem me prender. Podem me bater. Para mim sempre existiram os globalizadinhos. É de autoria de globalizadinhos, por exemplo, grande parte de nossa literatura. Alencar, por exemplo, era globalizadinho.Os parnasos todos eram. Os realistas, boa safra de românticos, etc. Melhor parar por aqui.) Triste pra mim é a maioria não ser mais capaz de sentir a “alegria de uma tristeza”!

Estou nu, prestes a entrar no banho, enrolado numa toalha velha, algodão enfiado no ouvido direito que se recupera de uma otite média mas penso, enquanto ouço a música do Nelson, e me delicio com sua melodia muito inspirada e bem executada nesta gravação. Entro no banheiro. Me dá na telha de escrever, ali, naquele momento, e desenvolver uma pergunta que acabava de me vir à mente, numa hora imprópria: Será que só existe beleza efusiva, beleza alegre? Será que a alegria é sempre bela? Por outra: Será que perdemos aquele sentimento bonito que era uma tristeza cheia de esperança, aquela melancolia lírica e honesta que nossa arte tanto expressou? Ou será que... Bem, me lembro então do Arnaldo Jabor, que costuma dizer: “A tristeza não é comercial”. Vou voltar mais um pouco.

É carnaval. Aliás, é pré-carnaval. A cidade, entretanto, começa já a transpirar um carnaval que ainda é hipotético, visto que o Bush é o atual Presidente do Mundo. Falta uma semana, exatamente. Tudo bem, eu aceito o argumento, claro que haverá carnaval, podes crer, e um carnaval longo, se esticando para a outra semana até. Contando bailes pré, pós e o carnaval propriamente dito, lá se vai em média um mês de “folia”. Haja alegria, hein! Acabo de voltar da rua, suado, exausto dos barulhos deste sábado pré-carnavalesco. Há todo um movimento, uma agitação opressora nos corredores urbanos do Rio. Pois que volto desse clima; porém não fui a nenhum bloco. Driblei a vontade de alegria de minha namorada levando-a para assistir a dois filmes sobre um Rio que jaz no imaginário pretérito: “Bar Esperança - o último que fecha” e “Fulaninha”. Para mim, foi uma tremenda folia. (Será que estou velho?) Não pulei. Não peguei ninguém - como diriam meus amigos, adolescentes de alma, namorada não conta. Não consumi. Não enchi a cara. Perdões: me embriaguei sim, mas dos dois Rios que vi representados nos filmes. Deslocado no espaço-tempo, pude amar novamente minha cidade.

Volto do sol, da rua, do barulho, de um Rio que já desgosto e vou ao banho. Antes, vou ao CD que tem a Clara guerreira cantando a “Minha Festa”. Mais um Rio me vem, outro Rio remoto, um Rio do morro antigo, ao pé do ouvido. Sinto-me mais feliz aqui que acolá, entre estranhos; banhado de meu saudosismo, em meus intermináveis diálogos internos, navegando em águas passadas e artes eternas, mergulhado nas profundezas melancólicas do lirismo mais-carioca-impossível que só um samba-canção é capaz de conter, subo a montanha de meu Rio imaginário, que não segue trio elétrico nem aplaude o primeiro fanfarrão que aparece na mídia. Me ocorre uma certa tristeza, sim; tristeza boa que eu não trocaria por nenhuma farra, por nenhuma musiqueta pretensamente “alegre”. A alegria do Rio de hoje me dá, em regra, tristeza. E sua anacrônica melancolia só me traz felicidade. Ave Nelson Cavaquinho! Ave Guilherme de Brito!

E chega de bundalelê. Vai que chega alguém! Vou agora mesmo tomar meu banho. A Clara já canta outra música. Logo mais eu saio por aí. É carnaval, dentro de mim, apesar de tudo.


Esse texto também pode ser encontrado no Quadrado Imperfeito.

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